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sábado, 23 de março de 2013

Julián Carax - O sonho


Começou estranho. As imagens eram efêmeras, como se eu tentasse enxergar um quadro
imerso na água. Não o quadro, mas eu. Andava, ou corria, não sei. O mundo era
monocromático, num tom bege alaranjado, como se tudo se resumisse à essa cor. Meus
pensamentos, o espaço, o tempo. Uma lataria se formou à minha volta, e com ela um som
arranhado, uma tosse metálica, um ronco oco, como se o próprio som fosse bege. Estava
indo por uma estrada de terra no carro quadrado. Também não sei que carro era, mas
lembrava um daqueles antigos, dos anos 50, e embora eu sentisse uma companhia ao meu
lado, não via propriamente nada. Eu vi o carro, de frente, parar. Eu era eu, e era outro. Outra
visão, externa, como um espectador ativo numa história que eu vivia, assistia, e ainda me
fugia ao controle. O carro parou impedido por um pequeno grupo de animais. Digo pequeno
na perspectiva de um exército, mas se eu pudesse contar, teria pelo menos cinquenta. Eram
galinhas, porcos e ovelhas. Ou eram porcos e galinhas. Ou eram galinhas e ovelhas. Ou eram
todos, alterando suas existências como um holograma sistemático. Monocromático. Bege. Eu
tinha em mãos uma banana-salsicha branca, e uma espécie de linguiça-cenoura. Destaco a
dualidade pela excentricidade da situação. Tudo naquele mundo parecia dual. As cores, os
sons, as imagens. A própria existência parecia alternar suas formas, e suas características,
como se tudo existisse, e ao mesmo tempo não existisse, me deixando certo de que meus
caminhos não eram retos, assim como o peso de minhas escolhas. Eu arremessei no mato,
fora de uma cerca de arame farpado, os alimentos em formado cônico e alongado. Como dois
pênis inertes e molengas, que arrastaram a atenção dos animais imediatamente,
engafinhando-se pela voracidade de comê-los. Como se a "bananasicha" e a
"cenouringuiça" fossem as duas coisas mais raras e importantes do planeta. Eu voltei pro
carro no fito de continuar minha jornada, e me vi num bondinho. A cidade não tinha
bondinho, embora eu não soubesse em que cidade estava, e sentisse que nunca havia estado
ali, apenas ouvido o nome. Um nome que eu não conhecia. O mundo mudara de cor. Agora
seguia um nuance acinzentado, que coloria todo o bondinho, os cabos de metal e a paisagem
à fora, que ia se fundindo com um verde acre, e se borrando, como tinta esparsada com a
mão de um pintor expressionista. Era a expressão máxima da confusão. Eu sumi de novo,
mas não da imagem, eu ainda a enxergava de fora. Mas não era mais um personagem ativo,
apenas o espectador. Minha visão girou, e agora eu enxergava um homem parado num
orelhão. A mesma presença do carro o acompanhava, incólume de meus olhares, uma
presença invisível mas imponente, ditando as palavras em sussurros inaudíveis, sem
proceder qualquer palavra. Uma comunicação monóloga, individual e enigmática. O homem
na cabine telefônica, ou orelhão, ou os dois, usava um terno bege, assim como seu chapéu
coco, ou cabelo negro desgrenhado, ou os dois. Agora eu via as teclas e segurava o telefone
nas mãos, enxergando como espectador e como personagem, os mesmos tons
monocromáticos de areia da estrada de terra. Eu disquei um número, subjetivamente,
porque não me lembro de tê-lo feito, mas lembro de conseguir ligar. E então vi meus olhos
subirem aos céus. Girando, como num tobogã de ar, e as imagens se mancharam novamente,
como se a mão do pintor invisível passasse com violência a palma sobre a superfície da
existência, borrando os tons que se esvaíam em vermelho, preto, bege e branco.


 E iam sumindo, como que sugados por uma descarga gigante e invisível, que me tragou para o teto.
O teto. Meus olhos pairaram no teto, ouvindo o tilintar na minha cabeça. Um som de
telefone. Atendi, mas não com as mãos. Nem com nada. Não me movi, prendendo os olhos no
teto. E ouvi a voz do outro lado da linha mental dizer "alô". Era minha voz! Mas ainda assim
não era eu. Respondi com um aceno mental também. Ele continuou "Me cansei disso, vou te
devolver o que é seu. Sou 98% do que você é. Sou sua inconsciência. Todo o mundo que te
rodeia não passa de um pequeno chão circular, preso por uma linha de pesca, no alto de um
fosso sem fim, sem começo. Uma linha tênue que você chama de sanidade. Você é 2%, uma
consciência finita, e que só enxerga o que seus sentidos sensoriais lhe outorgam sentir. Você
é 2%. Você é a parede do fosso. A linha, e o chão. O fundo e a saída. Eu sou o negrume. O eco
das suas vozes. A existência colossal. A escuridão que afasta o fim, o começo. E as paredes.
Eu sou tudo, e agora te dou a mim. Te dou o tudo, e desaparece-lhe a linha. E o chão. E as
paredes. E você se une à escuridão. E ao eco. E ao infinito. Pra descobrir que no fim. Você.
Não é. Nada." E eu percebi que estava acordado. Olhando pro teto. E tudo fora um sonho.
Mas, ainda assim, ouvira aquela voz, nitidamente, falar comigo. Falei com minha
inconsciente consciente, e acordado. Falei acordado com o meu "eu" que dormia. Falei
comigo mesmo, e recebi de presente o que era meu por direito. Minha própria inconsciência.
Meu próprio pensamento. Me tornei, naquela tarde, total.... Totalmente nada.

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